Por Najla Veloso, coordenadora do projeto Agenda Regional para Alimentação Escolar Sustentável na América Latina e no Caribe, do Programa de Cooperação Internacional Brasil-FAO
Discutir perda e desperdícios de alimentos (PDA) torna-se mais urgente quando nos deparamos com os dados do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) de que foram jogados fora 1 bilhão de toneladas de alimentos somente no ano de 2022. É como se ⅕ de tudo o que foi produzido fosse deliberadamente jogado no lixo. O tema ganha ainda mais relevância quando as estatísticas indicam que a fome atinge 41 milhões de pessoas na América Latina e Caribe e 733 milhões no mundo, segundo os dados mais recentes do estudo ‘O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo’, publicado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) e outras agências da ONU.
Mas esse não será um artigo sobre problemas e sim sobre soluções e caminhos possíveis, principalmente a partir do papel dos programas de alimentação escolar. Antes de avançar na discussão, é preciso diferenciar os conceitos de perda e de desperdício, às vezes usados como sinônimos. De acordo com a FAO, a perda ocorre na fase de produção, colheita, no pós-colheita e no processamento na cadeia alimentar. Já a etapa do desperdício ocorre no âmbito do consumo, geralmente no varejo e nas residências.
Neste artigo, vamos tratar do desperdício no ambiente escolar, envolvendo desde o planejamento da compra dos alimentos, passando pela preparação e o consumo das refeições pelos estudantes e, por fim, o descarte das sobras e restos dos resíduos orgânicos e inorgânicos gerados durante a alimentação escolar. Apesar de se falar em desperdício de alimentos no ambiente escolar geralmente a partir do momento da entrega desses produtos às escolas, etapas anteriores impactam na quantidade de alimentos que são descartados das escolas.
Nesse sentido, alguns critérios prévios à escola devem ser destacados para reduzir esse desperdício de alimentos no ambiente escolar, entre os quais se pode citar:
i) Adequado planejamento para a compra;
ii) Interlocução entre todos os atores envolvidos, principalmente entre gestores, nutricionistas e agricultores familiares;
iii) Respeito à sazonalidade dos alimentos produzidos localmente e a cultura alimentar regional;
iv) Capacitação dos agricultores para que tenham condições de atender às demandas dos programas de alimentação escolar;
v) Preferência por circuitos curtos que diminuam as chances de perdas, favorecendo a logística para que os alimentos cheguem em condições adequadas nas escolas.
Após a chegada dos alimentos às escolas, também são necessárias ações voltadas à mitigação do desperdício, tais como:
i) Armazenamento adequado;
ii) Definição de menus nutritivos que respeitem a sazonalidade e a biodiversidade local;
iii) Capacitação de merendeiras para que haja melhor preparo dos alimentos e que sejam servidas quantidades adequadas aos estudantes;
iv) Capacitação para reaproveitamento de sobras limpas e para preparo de outras receitas, com a utilização de talos, cascas e sementes, por exemplo;
v) Implementação de ações de educação alimentar e nutricional capazes de estimular o consumo de alimentos nutritivos e aumentar a aceitabilidade dos estudantes pela comida oferecida, o que tem o potencial de formar hábitos saudáveis para a vida e impactar positivamente a saúde dos estudantes e a de suas famílias.
Impacto ambiental, econômico e social
Quando essas ações não são bem planejadas e encadeadas, observamos uma quantidade relevante de comida desperdiçada. E é importante pontuar que não estamos falando apenas do descarte de alimentos, mas também dos recursos ambientais, financeiros e sociais empregados. Segundo o PNUMA, cerca de 8 a 10% das emissões globais de gases de efeito estufa decorrem da perda e do desperdício de alimentos. Em termos financeiros, o valor está estimado em US$ 1 trilhão.
Ainda do ponto de vista ambiental, o desperdício impacta no aumento de resíduos sólidos como embalagens plásticas, alumínio, vidros, isopores e metais. Os resíduos orgânicos dividem-se em dois tipos: sobras limpas e restos. As primeiras podem ser reaproveitadas na produção de novas receitas – criativas, saborosas e atrativas ao paladar dos estudantes. Já no caso dos restos – resíduos considerados impróprios para o consumo humano -, eles podem ser destinados para a produção de compostagem e biofertilizantes.
Possíveis soluções
Para minimizar o volume de resíduos sólidos gerados no processo de entrega, manipulação e durante a refeição na escola, podem ser adotadas práticas como a substituição de embalagens plásticas por materiais biodegradáveis ou a reciclagem de materiais inorgânicos, incentivando a separação e coleta seletiva.
Como alternativa viável voltada para a mitigação do desperdício de alimentos no ambiente escolar, destaca-se a importância da implementação de ações de conscientização, que podem incluir campanhas educativas com EAN e educação ambiental no currículo escolar. Ajustes nos cardápios levando em conta a aceitabilidade dos estudantes também permitem melhor aproveitamento dos alimentos.
Além disso, a implementação de hortas escolares pedagógicas favorece a aceitação pelos de alimentos saudáveis e in natura, produzidos e cultivados pelos próprios estudantes, fomentando assim hábitos de consumo mais saudáveis e conscientes. Outra ação possível é o aproveitamento do dos resíduos orgânicos que voltam para a horta como compostagem, produzindo um ciclo sustentável: os alimentos são cultivados, consumidos e seus restos tratados retornam ao solo.
Nesse sentido, há promissoras e inspiradoras experiências no Brasil e na América Latina, desde projetos que adaptam a quantidade de alimentos com base no consumo e que mensuram o que foi desperdiçado, até ações de EAN que conscientizam sobre a importância de não se jogar fora comida de qualidade em um mundo com milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar.
Além disso, o aspecto ambiental tem ganhado destaque, com ênfase na vinculação entre nossas decisões alimentares e as mudanças climáticas. No entanto, é muito importante que essas ações não dependam apenas da boa vontade de gestores ou professores comprometidos e sim que sejam institucionalizadas nas escolas e inseridas dentro do currículo.
Avanços legislativos sobre o tema
É importante destacar a existência de marcos normativos que orientam gestores, professores e a sociedade civil sobre como agir para reduzir o desperdício. No caso brasileiro, a Lei nº 11.947/2009, que regulamenta o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), determina o mínimo de 30% de compras da agricultura familiar, o que estimula circuitos curtos de produção e de consumo, facilitando a logística e estimulando o consumo do que é regionalmente produzido. Essa lei prevê ainda a inclusão de ações de EAN no processo de ensino e aprendizagem como uma das diretrizes da alimentação escolar, abordando o tema da alimentação, da nutrição e do desenvolvimento de práticas saudáveis de vida, na perspectiva da segurança alimentar e nutricional.
Além disso, cabe citar a Portaria Interministerial nº 1.010/2006, do Ministério da Saúde e do Ministério da Educação, que estabelece diretrizes para o atendimento da alimentação escolar e destaca a necessidade de medidas que evitem o desperdício, como a adequação da quantidade de alimentos preparados às necessidades dos estudantes. Também há normativas estaduais e municipais que abordam o tema do desperdício no âmbito da alimentação escolar.
No âmbito da América Latina e Caribe, é possível observar avanços legislativos voltados à diminuição de PDA, a partir da regulamentação sobre doações de alimentos, conscientização sobre resíduos de alimentos e a inclusão do tema nos currículos escolares. São os casos de Argentina, Colômbia , El Salvador, México, Panamá e Peru, por exemplo.
Uma rede para compartilhar soluções
Outra iniciativa do Governo Brasileiro, por meio da Agência Brasileira de Cooperação (ABC) e do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), com apoio da FAO, é a Rede de Alimentação Escolar Sustentável (RAES), criada em 2018. Essa rede tem, desde então, compartilhado boas práticas e capacitado profissionais dos programas de alimentação escolar de cerca de 26 países. Nos últimos anos, a Rede apoiou a realização de diálogos e intercâmbios para apresentar e discutir soluções e desafios para reduzir as PDA, especialmente no âmbito dos programas de alimentação escolar e seus entornos.
Por fim, cabe dizer que o combate ao desperdício no âmbito escolar exige esforço conjunto entre governos de diferentes níveis, tomadores de decisão, parlamentares, sociedade civil, gestores de escolas, educadores e nutricionistas, além de demandar a colaboração dos próprios estudantes e suas famílias.