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Artigo: Ninguém aprende com fome

Alimentação adequada na escola é uma forma de enfrentar dados de insegurança alimentar revelados pelo SOFI 2022

Najla Veloso*

Não são poucos os desafios conjunturais que se colocam neste momento no mundo, onde se observa o agravamento do quadro de insegurança alimentar das populações, conforme evidencia o último relatório “O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo (SOFI)”, divulgado neste mês pela FAO e por outras agências da ONU. Alta da inflação, desemprego elevado, cadeias de produção prejudicadas, redução da oferta de comida e de insumos por conta de conflitos, medidas protecionistas reduzindo exportações, além das consequências da pandemia. A lista é longa.

O SOFI mostrou que, na América Latina e no Caribe, cerca de 56 milhões de pessoas passaram fome (subalimentação) no ano passado, enquanto outras 93,5 milhões vivenciaram insegurança alimentar grave. Se somarmos a insegurança alimentar grave com a moderada, chegamos a 267,7 milhões. É o mesmo que dizer que quase quatro em cada 10 habitantes de nossa região não conseguem se alimentar da forma adequada.

A fome, na maioria das vezes, não ocorre por falta de alimentos, e sim por falta de renda. É um problema antigo decorrente da pobreza e da desigualdade que marcam nossas sociedades. Lamentavelmente, esses fatores sociais foram agravados pela recente crise sanitária.

Na América Latina e no Caribe, afortunadamente, mais de três dezenas de países dispõem de mecanismos e políticas públicas para garantir a alimentação a uma parcela significativa de suas populações: os estudantes

São cerca de 85 milhões de crianças, adolescentes e jovens atendidos pelos programas de alimentação escolar na região. E não é exagero dizer que a oferta de alimentos na escola tem sido protagonista no enfrentamento da insegurança alimentar, conforme reconhece o mencionado relatório.  

A alimentação escolar é uma das políticas mais articuladas e articuladoras que um país pode ter. Ela transversa os vários setores dos governos e permite um diálogo fácil com toda a sociedade. Ninguém se coloca frontalmente contra a oferta de alimentos na escola para os estudantes. 

Um exemplo é a implementação de compras públicas de pequenos agricultores, que não só garante alimentos frescos, saudáveis, adequados, saborosos e regionais aos estudantes, como favorece o desenvolvimento local e garante renda e dignidade para mulheres e homens que, não raro, integram as populações mais vulneráveis de seus países. Além disso, ensina os estudantes a valorizar o produto de sua terra, sua cultura e dão visibilidade à biodiversidade local. É uma via de duas mãos que reorienta o uso de recursos públicos fomentando sistemas alimentares mais sustentáveis, justos e resilientes. 

Para além de dialogar com os estudantes e com os agricultores do entorno, essa política impacta na construção de hábitos saudáveis de vida. Por isso, como parte desse programa, educamos os estudantes a respeito do que se come e do que se oferece na escola, permitindo a eles escolhas mais conscientes não só no espaço educativo mas em 

toda a sua vida social, como fomento de uma cultura alimentar mais saudável e sustentável para essa e para as próximas gerações.  

Ninguém aprende com fome

Do ponto de vista cognitivo, uma alimentação saudável na escola, na hora certa, composta por verduras e frutas, lácteos, ovos, cereais, é condição de êxito, de rendimento, de maior permanência e de mais capacidade de atenção por parte dos estudantes. Por isso, quando nos deparamos com dados como os do último relatório SOFI, é mister reafirmar a importância da política de alimentação escolar como ferramenta capaz de garantir o direito humano aos cerca de 20% das populações dos países. 

Por isso, reafirmamos o valor do diálogo direto com os países, fomentando e colocando à disposição, de maneira solidária e fraterna, a cooperação internacional oferecida pelo governo brasileiro, especialmente pela Agência Brasileira de Cooperação (ABC) e o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), que têm colocado à disposição dos países a experiência de mais de 67 anos do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), como referência e impulso a mudanças estruturais positivas em nossa região. 

A partir do trabalho desenvolvido pela Cooperação Internacional Brasil-FAO desde o ano de 2009, houve melhorias significativas na qualidade de muitos dos programas na região. Como exemplo, pode-se mencionar a elaboração de leis específicas de alimentação escolar em seis países e diversos marcos normativos, a elevação da cobertura de estudantes, a maior destinação de recursos para as ações de alimentação escolar, o estabelecimento formal de compras da agricultura familiar local em treze países, o fortalecimento da infraestrutura de milhares de escolas, a formação de comitês intersetoriais para diálogo sobre a política e o envolvimento de outros segmentos sociais, como parlamentares e sociedade civil nesse diálogo.  

Todas essas ações foram fomentadas a partir de apoio técnico, intercâmbio de conhecimento e da construção de capacidades, buscando garantir a sustentabilidade da política de alimentação escolar, especialmente no sentido de garantir recursos necessários, continuidade e permanência, resistência a mudanças conjunturais de gestão e a crises ambientais, econômicas e sanitárias. 

Em resumo, trabalhamos para que a alimentação escolar seja vista como uma política de Estado e não de governos. Para que, de fato e em qualquer circunstância, seja garantido o direito humano à alimentação de qualidade aos estudantes de todas as escolas. Sabemos que é de fundamental importância recuperar as economias, empregos e a renda das famílias, que são cruciais na garantia da segurança alimentar e nutricional. Do lado da produção, o desafio é produzir alimentos saudáveis de forma mais barata e acessível, com incentivos para pequenos produtores, fomentando circuitos curtos de produção e de consumo. 

Já sabemos que ninguém aprende com fome na escola e que, muito provavelmente, seja comum o entendimento de que sem aprendizagem, educação de qualidade e saúde, não se pode intervir de forma efetiva nesses indicadores. Assim, para além de diagnosticar o cenário social, deixamos registrado um dos caminhos mais eficientes que o Estado pode adotar para enfrentar os dados emergentes: alimentar seus estudantes com comida de qualidade, saudável e fresca, adquirida por meio de circuitos curtos locais, e associada com ações educativas durante todo o ano escolar. 

*Coordenadora do projeto Consolidação de Programas de Alimentação Escolar na América Latina e no Caribe